quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A casualidade de Paul Auster


Enquanto passeava em uma livraria em Madrid, me interessei por um livro de Paul Auster, “Oracle Night”, lançado em 2003. Acrescentei este livro a minha bagagem, mas somente agora tive a oportunidade (leia-se tempo) de lê-lo. Esta é minha primeira incursão aos romances deste escritor americano muito elogiado em suas primeiras obras - “A Invenção da Solidão” (1982), “A Trilogia de Nova York” (1987); “Leviatã” (1992) e o “Livro das Ilusões” (2002), e bastante criticado em suas obras mais recentes. Segundo os críticos, “Noite do Oráculo” é interessante, mas está aquém de seus romances iniciais.

Em "Noite do Oráculo", casualidade e coincidência são o ponto de partida da história. O personagem principal, Sidney Orr, alter-ego do autor, passa por um longo período de inatividade após um acidente em que os médicos não lhe dão nenhuma expectativa de vida. Contrariando as especulações, o escritor/personagem consegue sobreviver, no entanto, com algumas seqüelas neurológicas.

Em um de seus passeios matinais pelo Brooklyn, hábito imposto pelos médicos para que a sua melhora fosse mais progressiva, ele entra em uma papelaria e compra um caderno de anotações azul, fabricado em Portugal. Orr tem a impressão de que o caderninho favorece sua escrita e começa a escrever um romance em que o mote principal é a casualidade.

O personagem/escritor cria uma história baseada em um personagem do escritor Dashiell Hammet (que eu nunca tinha ouvido falar até ler esse romance de Auster). O personagem em questão, da obra de Dashiell Hammet, chama-se Flitcraft e é o típico americano: empresário bem-sucedido, casado e com filhos e que, em um belo dia, quase morre após a queda da viga de um andaime. A partir daí, ele resolve largar a sua vida "porque ficou então sabendo que poderia morrer assim por acaso, e viver apenas enquanto a sorte cega me poupasse". Flitcraft não se preocupa em avisar mulher e filhos, pega um avião para outro estado e começa uma nova existência.

No caderninho azul, o alter-ego de Paul Auster começa a criar tramas em que personagens abandonam suas vidas e mudam seus referenciais, criando histórias dentro da história. Explicando: Sid Orr cria um personagem, Nick Bowen, que trabalha em uma editora e recebe um romance para avaliar que chama-se "Noite do Oráculo" (a metalinguagem é óbvia), no qual um cego prevê o futuro, mas não consegue conviver com a possibilidade da traição de sua futura esposa. Ao conhecer a neta da escritora de “Noite do Oráculo”, Nick Bowen apaixona-se por ela e resolve largar tudo.

Parece confuso, mas não é. Paul Auster delimita com maestria esse labirinto de histórias dentro de histórias e, ao mesmo tempo em que o leitor fica preso às linhas que são escritas no tal livro azul, também é atraído pela vida de Sid Orr que, de repente, começa a sair do rumo. Sua esposa, Grace, passa a ter atitudes muito estranhas e seu amigo John Trause (sobrenome que tem as mesmas letras do nome de Auster), também escritor, começa a ter problemas de saúde. Será que o caderninho azul tem alguma coisa a ver com tudo de estranho que começa a acontecer em sua vida? Uma coisa é certa, o autor coloca muito de si em seus personagens e, pelo que soube ao fazer pesquisas sobre seus livros, seus personagens principais são sempre escritores em crise existencial e de criatividade.

Achei muito interessante esse romance de Paul Auster e o labirinto de histórias, todas convergindo para uma única história, como um jogo de espelhos. A partir da metade, o livro perde um pouco de sua energia inicial, mas o final surpreende. Dá até para fazer um paralelo invertido com a história de Bentinho em “Dom Casmurro” (de Machado de Assis), mas não vou me estender para não tirar o interesse do leitor. Gostei bastante do livro e fiquei curiosa para ler as obras do início de sua carreira.

Abaixo, um trecho do romance:

(…) Flitcraft é um indivíduo absolutamente convencional – um marido, um pai, um homem de negócios de sucesso, uma pessoa sem a menor razão de queixa. Certa tarde, sai para almoçar e uma viga cai de umas obras no décimo andar de um prédio e por pouco não aterra em cima da sua cabeça. Mais uns centímetros e Flitcraft teria sido esmagado, mas a verdade é que a viga não acerta nele, e, tirando um estilhaço do passeio que, sob o impacto, o atinge no rosto, Flitcraft sai do acidente perfeitamente ileso. Contudo, o fato de ter escapado à morte por um triz provoca nele um choque violento, de tal forma que não consegue deixar de pensar no caso. (…) ele sentia-se como se alguém tivesse tirado a tampa que oculta a vida e o tivesse deixado ver toda a engrenagem…dá-se conta de que o mundo não é o sítio equilibrado e ordenado que pensava que era, dá-se conta de que sempre vira o mundo completamente às avessas, de que nunca compreendera nada de nada. O mundo é governado pelo acaso. O aleatório ronda a presa que nós somos, todos os dias das nossas vidas, e essas vidas podem ser-nos roubadas a qualquer momento – por razão rigorosamente nenhuma. Quando acaba de almoçar, Flitcraft conclui que a submissão a esse poder destrutivo é inescapável, que não tem outra hipótese senão despedaçar a sua vida através de um acto sem sentido, um acto absolutamente arbitrário de autonegação. Combaterá o fogo com o fogo, por assim dizer, e, sem se dar ao trabalho de voltar a casa ou de se despedir da família, sem sequer se dar ao trabalho de retirar algum dinheiro do banco, levanta-se da mesa do restaurante, parte para outra cidade e recomeça a sua vida do zero. (…)

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